sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Mais histórias sobre o jardineiro da esquina...

7. Primavera partida

Em tempos de beleza rara, queremos capturar toda a beleza do mundo pra guardar em nós. É a sensação que se tem ao nos darmos conta que vivemos em meio ao caos intermitente, onde os sorrisos esqueceram como estampar rostos, onde os sonhos ficam guardados no congelador, esperando ansiosos pelo momento de saírem da prateleira e alcançarem as estrelas. Em meio à um mundo preto-e-branco com sentimentos pela metade, como as flores vão lembrar de exalar seu perfume e colorir nossos olhos?
Era primavera, mas não aparentava. A neblina tornava as pessoas pouco visíveis umas para as outras, talvez porque criem mais abismos do que pontes. E as rosas choravam a primavera amaldiçoada pela tristeza pesada que o ar carregava. E o jardineiro continuava com a dedicação de sempre, pois é inconcebível um mundo sem rosas. As pessoas precisam delas, pra admirar, sentir o perfume, fazer juras de amor, acreditar que a beleza não morreu. Que tudo pode ter encanto, que tudo é possível, e que sempre há a chance do nosso futuro recomeçar e nosso coração florir novamente. Especialmente na primavera. E na primavera, as rosas são óbvias...


8. Flores em dezembro

Talvez mais guerreiras que as rosas que dão no inverno e tem que resistir à melancolia fria de uma época pouco colorida aos nossos olhos, são as flores de dezembro. Porque não é fácil ser bela e exalar perfume quando algo parece queimar a sua essência. Falando de flores de dezembro, me recordo e comparo aos amores de verão. Eles são brilhantes, doces, excitantes e inesquecíveis. As flores também, pois não é fácil se manter com pétalas intactas em meio ao calor das emoções. Corações que vivem romances de verão, jamais permanecem intactos. Eles sempre carregam o perfume de uma estrela cadente que brilhou por segundos e cujo brilho se perpetuará em suas lembranças. Acho que é pensando nisso que o jardineiro continua a cuidar das flores em dezembro. Lutando contra a correnteza e tendo o canto dos pássaros como trilha sonora. Os pássaros só cantam em dezembro. Acho que é isso que o motiva e inspira. Na verdade, que o impulsiona. Amores pedem trilha sonora. As flores também. E o jardineiro sorri por trazer sorrisos coloridos e lembranças perfumadas aos eternos sonhadores. E ao presenciar isso, os pássaros, entusiasmados, encantam o cenário da esquina. O sol parece brilhar ainda mais, as estrelas brilham no chão. Em dezembro, janeiro, fevereiro...e em todos os tempos, nos corações daqueles que buscam dias coloridos, romances em jardins, canções de sonhar.
E pra não dizer que não falei das flores...elas são o elo dos apaixonados...

domingo, 6 de janeiro de 2008

Matando a saudade em sonho...


O Blog é MEU, e sou EU quem escreve aqui, mas hoje, ao prestar um concurso e ler esse texto na prova de português, abri uma exceção pra Martha Medeiros...aliás, tiro meu chapéu...deliciem-se...e vejam como é verdade...


"A saudade não tem nada de trivial. Interfere em nossa vida de um modo às vezes sereno, às vezes não. É um sentimento bem-vindo, pois confirma o valor de quem é ou foi importante para nós, e é ao mesmo tempo um sentimento incômodo, porque acusa a ausência, e os ausentes sempre nos doem.

Por sorte, é relativamente fácil exterminar a saudade de quase tudo e de quase todos, simplesmente pegando o telefone e ouvindo a voz de quem nos faz falta, ou indo ao encontro dessa pessoa. Ou daquele lugar que ficou na memória: uma cidade, uma antiga casa. Podemos eliminar muitas saudades, enquanto outras vão surgindo. A saudade do gosto de uma comida, de um cheiro do passado, de um abraço. Há muitas saudades possíveis de se conviver e possíveis de matar. A única saudade que não se mata é a de quem morreu.

Matar, morrer. Que verbos macabros para se falar de nostalgia. Já ouvi vários relatos sobre a saudade que se sente de um pai, de um avô, de um filho, de uma amiga, dos afetos que nos deixaram cedo demais - sempre é cedo para partir, não importa a idade de quem se foi. Ficam as cenas guardadas na lembrança, mas elas se esvanecem, recordações são sempre abstratas. De concreto, palpável, tem-se as fotos e as imagens de gravações caseiras, mas de tanto vê-las, já não vemos. Já a sabemos de cor. Não há o rosto com uma expressão nova, a surpresa de um gesto inusitado. Como, então, vencer a saudade com algo que seja mais parecido com presença?

Através do sonho. Uma mãe que perdeu seu filho quatro anos atrás me conta que todos em casa sonham com ele, menos ela. Para sua infelicidade, ela não tem controle sobre isso, simplesmente não recebe essa bênção, e queria tanto. E eu a entendo, porque através do sonho a pessoa que se foi nos faz uma visita. Pode até ser uma visita aflitiva, mas a pessoa está de novo ali, ela está interagindo, ela está sorrindo, ou está calada, ou está dançando, ou escapando de nossas mãos, mas ela está acontecendo em tempo real, que é o período em que estamos dormindo, e que faz parte da vida, e não da morte.

De vez em quando sonho com minha avó e sempre acordo animada por ela ter encontrado esse meio de me dar um alô, de me fazer recordá-la. Observo seu jeito, ouço sua voz e penso: quem roteirizou esse sonho? De onde vieram suas palavras para mim? A resposta lógica: meu inconsciente falou através dela, só que isso tira todo o encanto da cena. Prefiro acreditar que ela é que esteve no comando da sua aparição, me dizendo o que tinha para dizer, nem que fosse uma frasezinha à toa.

Um colega de trabalho falecido há 20 anos num acidente de carro também já me apareceu em sonhos algumas vezes, e quando isso acontece acordo com a sensação de que morte, mesmo, é esquecimento: enquanto eu abrir as portas do sonho para ele entrar, meu amigo seguirá existindo.

Nesse feriado de Finados, o que se pode desejar para os inúmeros saudosos de mães, de maridos, de netos? Que os sonhos abracem a todos."


Martha Medeiros, Jornal "O globo" de 04/11/2007.